Tradição das batucadeiras do Tarrafal mantida pela alma da Associação Delta Cultura
Marisa Correia fundou aos 26 anos a Associação Delta Cultura, para apoiar crianças e jovens do Tarrafal, mas foi com o batuco que levou longe este município cabo-verdiano nos últimos vinte anos, preservando a tradição das batucadeiras.
“O batuque surgiu porque tínhamos uma escola de futebol, tínhamos também meninas que frequentavam a escola [da associação], e eram muitas, e como eu gostava muito do batuco resolvi formar um grupo com essas meninas que praticavam desporto na Delta Cultura”, começa por explicar, em entrevista à Lusa na sede da instituição, no Tarrafal, ilha de Santiago.
Mais do que fundadora e administradora, Marisa Correia é a alma da Associação Delta Cultura, que nos arredores da vila do Tarrafal recebe diariamente dezenas de crianças e jovens, com quem trabalha na área da cultura, formação e desporto, contando inclusivamente com o apoio de voluntários, nomeadamente de Portugal.
“Temos crianças de quatro a seis anos que frequentam o jardim de infância e temos jovens até 21 anos. Vêm aqui, fazem trabalhos de casa, praticam desporto, usam a sala de arte, sala de informática, e todos os dias temos diferentes atividades que organizamos para eles fazerem”, explica.
Orgulhosa do centro a que deu vida, conta que o batuco (ou batuque), com um grupo criado a partir do interior da associação, é algo especial em todo o projeto. Atualmente são 22 mulheres, praticamente todas elas desde crianças a frequentar a associação, e um homem, encarregue de tocar piano.
Já as tradicionais tchabeta e djambé, para precursão, além da voz e da dança, ficam a cargo das mulheres.
“Algumas já praticavam batuque em casa, mas muitas aprenderam comigo, na minha casa, porque não ensaiamos aqui no centro, é um pouco longe da cidade. Mas muitas aprenderam na minha casa e muitas trazem de suas casas porque aqui se diz que o batuque já nasce na alma”, conta.
Trata-se de um género musical, corporizado por mulheres com os seus batuques, com origem na ilha de Santiago, mas que os emigrantes cabo-verdianos espalharam pelo mundo.
Em 2002, sentiu que havia necessidade de criar um grupo de batuque no norte da ilha de Santiago, ou não fosse um dos berços deste género musical típico de Cabo Verde, com origens no século 18.
“Motivou porque sou uma pessoa que gosta muito de fazer batuque e vi que havia necessidade de criar um grupo no Tarrafal. Conhecia um grupo no Tarrafal, que era o ‘Pó di Terra’ e outro, que já não existem. Existiam só esses grupos, não tinham CD no mercado e quando havia alguma atividade não havia batuque e vi que o Tarrafal precisava”, recordou.
A criação do grupo, inicialmente com as meninas do centro, foi só o início: “Depois criámos um festival de batuque, em que convidámos grupos de outros concelhos para participar e isso motivou a formação de muitos grupos em outros concelhos”.
Deina Costa está desde os 7 anos no grupo liderado por Marisa. Aos 25 anos é orgulhosamente a ‘tornista’ do Delta Cultura: A dançarina em que, em determinados momentos da música, todos os olhos se concentram.
“Nasci numa família que gosta muito do batuque, desde pequenina eu dançava muito o batuque, tinha seis anos quando comecei a dançar. E os meus familiares sempre me motivaram a dançar o batuque, estava noutro grupo e depois comecei com o grupo Delta Cultura”, explica à Lusa.
O género caracteriza-se essencialmente pelas mulheres, conhecidas como batucadeiras, que combinam percussão, canto e dança, em que a mulher é a corista e canta sobre o dia-a-dia, mas também de política e cultura, por vezes com crítica.
Apensar de também tocar e cantar, é a dançar que Deina se sente melhor e não esconde que, como ela, mais jovens estão a aproximar-se deste género típico cabo-verdiano.
“Acho que agora há muitos jovens que estão a gostar muito do batuque. Está a mudar. Antes era mais para as pessoas mais velhas, mas agora os jovens estão a praticar muito”, considera.
Esta nova vida do batuco e das batucadeiras conheceu recentemente um reconhecimento nacional em Cabo Verde. O parlamento instituiu o dia nacional do Batuco, a assinalar anualmente em 31 de julho, conforme proposta de lei aprovada por unanimidade em março último.
“Já veio um pouco tarde, mas é bem-vindo, está muito bem reconhecido e acho que o batuque merece, por ser a música tradicional mais antiga de Cabo Verde. Também estamos a organizar um festival de batuque para esse dia, 31 de julho, para comemorar essa data, que agora é muito valiosa para o batuque”, diz Marisa Correia.
A tradição remonta à proibição do uso de tambores durante o período colonial, em que as mulheres passaram a ‘batucar’ em peças de tecido, que ainda se mantêm.
Atualmente há dezenas de grupos de batuco em várias ilhas, mas sobretudo em Santiago, e realizam-se concursos e festivais regulares no país e na diáspora, mas o ponto alto da divulgação internacional aconteceu em 2019, com a cantora norte-americana Madonna a gravar, cantar e dançar o tema “Batuca”, do álbum “Madame X” com um grupo de batucadeiras.
Para Marisa, foi pelo trabalho desenvolvido por associações como a Delta Cultura que a tradição conquistou os mais jovens: “Ajudou muito porque fazemos muito pelo batuque. Fazemos muito, vamos a outros concelhos ensinar outros jovens”.
Antes da pandemia, pelo menos uma vez por mês, o grupo viajava até à Praia, no outro extremo da ilha de Santiago, para atuações de batuque sempre concorridas.
“Tocamos até duas horas, mas podem ser três, se for preciso”, brinca.
Fonte: Lusa